Uma luz no fim do túnel para os botos da Baía de Guanabara

Área de preservação serve de refúgio para os animais, enquanto soluções para despoluição das águas aguardam implantação

Um dos símbolos do Rio de Janeiro, presente até no brasão da cidade, o boto-cinza é também um exemplo de resistência da Baía de Guanabara. A população de animais da região é considerada a mais ameaçada da costa brasileira: de acordo com registros históricos, na década de 1980, cerca de 400 indivíduos dessa espécie de cetáceos viviam em toda a extensão da baía, número que não chega a 10% atualmente.

Professor do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua) da Faculdade de Oceanografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Alexandre Azevedo afirma que a redução do número de botos se deve às condições ambientais. “São animais sensíveis à qualidade das águas, a ruídos e a outros impactos gerados pela ação humana no seu habitat natural, que dificultam sua reprodução. E, quando se reproduzem, os filhotes nascem com muitos problemas oriundos da alta taxa de contaminação das águas da Baía de Guanabara.” Vários tipos de substâncias tóxicas e metais pesados nocivos à espécie são encontrados lá. Segundo o professor, os filhotes são os mais prejudicados, pois a contaminação ocorre a partir da amamentação. “Os poluentes chegam aos peixes e animais invertebrados e isso bioacumula – ou seja, se acumula dentro de um ser vivo – até chegar aos botos, que estão no topo da cadeia. A mãe acaba passando isso para seus filhotes pelo leite.”

O Maqua vem estudando os botos-cinza da Baía de Guanabara há cerca de 30 anos. Azevedo diz que uma das hipóteses consideradas é que os poluentes analisados a partir de materiais biológicos podem afetar aspectos hormonais e reduzir a taxa de fecundação dos animais. “Além de filhotes que morrem cada vez mais cedo, temos observado fêmeas adultas que nunca se reproduziram, ao passo que o normal é terem um filhote por estação reprodutiva, que dura de dez a 11 meses”, relata.

Atualmente, os botos da Baía de Guanabara estão mais presentes nas águas da Área de Preservação Ambiental de Guapimirim (APA Guapimirim). Como afirma o analista ambiental da APA Guapimirim, ESEC da Guanabara e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Maurício Barbosa, trata-se de uma área em que ainda é possível ver uma Baía de Guanabara viva, graças à boa conservação dos manguezais e ao desemboque de rios com melhor qualidade da água. “A presença dos botos é um indicativo da saúde do ambiente. Isso quer dizer que há uma diversidade biológica satisfatória neste ponto da baía, com a presença de peixes e outras espécies nativas.”

A restrição de navegação é outro elemento que favorece a presença dos botos-cinza na APA de Guapimirim, segundo Barbosa. “Os animais têm evitado se deslocar por causa do barulho das embarcações, que formam uma cortina de poluição sonora na Baía de Guanabara, prejudicando o sistema biossonar desses cetáceos.”



Perspectivas

O analista ambiental pondera que mesmo na APA Guapimirim são encontradas camadas de metais pesados. Por isso, ainda que em condições ambientais mais favoráveis, os botos permanecem sob risco de extinção local. “Há muitos anos, temos feito um trabalho para evitar outras causas de mortalidade, a exemplo da conscientização dos pescadores, alertando sobre o perigo de as redes capturarem botos acidentalmente, provocando a morte desses animais”, afirma.

O professor Alexandre Azevedo é contundente ao afirmar que, para a população de botos- cinza voltar a crescer na Baía de Guanabara, é imprescindível retomar com urgência os cuidados com a qualidade das águas. “Sabemos das perspectivas de mudanças que podem reverter o cenário atual da baía. Mas os botos são animais com expectativa de vida de 30 anos e esse grupo tem alguns indivíduos com mais de 20 anos. Então, não acredito que eles consigam resistir tanto tempo mais nessas condições”, explica. Segundo o pesquisador, por serem animais de topo de cadeia, a possível extinção local da espécie acarretaria um desequilíbrio em toda a biota da baía.



Agentes poluidores e hidrodinâmica

A poluição da Baía de Guanabara é algo mais complexo do que se imagina, pois elenca um conjunto de fatores que, se não enfrentados de maneira sistêmica, não permitirão efetividade de soluções.

O coordenador do projeto Baías do Brasil, Paulo Cesar Colonna Rosman, analisou com o Sistema Base de Hidrodinâmica Ambiental (SisBaHiA) as águas da Baía de Guanabara, indicando o excesso de nutrientes, compostos de nitrogênio e fósforo, que chegam à baía por meio do esgoto doméstico como o principal problema do local. Esses nutrientes funcionam como adubos para micro algas (fitoplâncton), que, consequentemente, nascem e crescem em uma quantidade muito acima dos níveis ambientalmente saudáveis, deixando as águas da baía turvas em diferentes locais.

“Esses excessos causam grande desequilíbrio, especialmente nas áreas de desembocadura dos rios que carregam grande quantidade de matéria orgânica e nutrientes. São áreas densas em população, carentes de estrutura de saneamento adequada”, afirma o pesquisador. Segundo ele, a única forma de diminuir o estoque de material orgânico da baía e, com isso, conduzi-la a uma melhor condição ambiental, é diminuir as taxas de depósito de matéria orgânica e nutrientes para que, aos poucos, as águas renovadas sejam capazes de absorver saudavelmente tais depósitos. Hoje, essa taxa de depósitos é maior do que a capacidade de assimilação no ecossistema da baía de forma saudável.

“Muitos corpos d’agua têm um problema de saque de materiais orgânicos. Não é o caso da Baía de Guanabara, onde há uma boa troca com a maré. Observamos que, ali, as correntes marítimas são o principal meio de renovação das águas, com exceção de alguns pontos, como o Canal do Fundão, próximo da UFRJ, e alguns outros em que podemos intervir a fim de promover uma melhor circulação. Essa renovação é fundamental para alcançarmos a despoluição”, diz Rosman.

Para o especialista, a situação em que se encontram hoje as águas da Baía de Guanabara é consequência da carência socioeconômica da população que vive em seu entorno. “Somente na orla da Baía há uma população de quatro milhões de pessoas vivendo em condições relativamente precárias ou muito precárias. Elas estão mais preocupadas com a sobrevivência do que com a própria qualidade de vida ou do meio ambiente. É preciso promover o desenvolvimento socioeconômico da região para que a Baía de Guanabara volte a condições biológicas saudáveis. É um efeito em cadeia.”

Segundo Rosman, a expectativa é grande em relação aos investimentos decorrentes do Novo Marco Regulatório do Saneamento, aprovado em 2020. “Várias empresas estatais que continuam existindo como centrais já concessionaram suas bacias para empresas privadas. Aqui, no Rio de Janeiro, nos vários locais em que observamos os novos modelos de concessão, há várias melhorias, porque os contratos estabelecem metas a serem cumpridas. Então, temos uma esperança muito grande nesses projetos”, reforça.




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